sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Agosto


Da janela do carro, observo a paisagem. Já é fim de agosto. A seca transforma a paisagem do cerrado, que mais parece caatinga. Os arbustos, retorcidos e sem folhas, descascam suas grossas epidermes, como se agonizassem pela sede. As moitas amareladas de capim-navalha apontam para o alto suas folhas já sem vida. Todas as plantas são iguais aos olhos: um amontoado de gravetos.
Restos de vapor d'água sobem, tremulando a visão da paisagem. O enorme chapadão de areia, reluzido pelos raios de sol, parece incendiado. Não há nenhum indício de chuva no céu acinzentado. As nuvens estão todas ofuscadas por um véu de fumaça e poeira.
O amarelo das rochas de arenito se mistura com o marrom do mato seco e o preto das árvores cobertas de carvão, que, vigorosamente, resistiram à primeira queimada, dando uma visão monocromática ao relevo. As cigarras, angustiadas, em coro, gritam uma espécie de aboio.
                        Tento encher o pulmão de ar. Sequiosa, a mistura de oxigênio e fumaça entra arranhando os canais da narina, como se lambesse o resto de água que havia no organismo. Sinto a boca amarga e o muco seco, que gruda nas paredes do nariz.
- Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? Por que te alongas do meu auxílio e das palavras do meu bramido? Deus meu, eu clamo de dia, e tu não me ouves (…) A minha força se secou como um caco, e a língua se me pega ao paladar; e me puseste no pó da morte. Clamo como o salmista.
Percebo que há um deserto em mim, lá dentro também é agosto. Fecho os olhos e posso sentir folhas secas se desprendendo e ouvir o barulho estridente das cigarras interiores: vapores quentes de uma inquietação que me assopra.
Em grunhidos, ofereço a Deus uma oração sem palavras. Rogo-lhe o que me falta: aquilo que não sei o que é.
Supostas respostas vem à mente, mas não há nenhuma que me satisfaça. Só consigo me lembrar das pastagens verdes da primavera e das águas abundantes, que, ao caírem do céu, corriam brancas entre as pedras. Murmuro alguns lamentos amargos de saudades, que saem da boca em estado de arrotos.
Vejo então uma árvore de ipê. De tão retorcida, parece ser açoitada pelo sol. Aquela árvore humilde e audaciosa, em meio a toda a agonia, aponta para o céu, da ponta de seus bracinhos finos, inúmeras flores amarelas, que, de tão amarelas, parecem feitas de pura luz.
Há um sinal de vida na paisagem! De uma realidade resistente ao sol e à seca, que, em meio ao caos, louva como criação, oferecendo, em pura poesia, o que produz em primícias. Ali, agosto também é primavera o momento oportuno de florescer.
Aquela árvore de vanguarda me evangeliza, quando, ainda no mês de agosto, anuncia uma primavera que, com certeza, chegará! Nela enxergo Jesus, magro, moribundo e oprimido, nos desertos da Judeia, anunciando o Reino de Deus aos pobres.


quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Ideal



Quanto as vantagens restantes – casas, terras, móveis, semoventes, consideração de políticos, etc. - é preciso convir que tudo está fora de mim. Julgo que desnorteei numa errada. (...) Hoje não canto e nem rio. Se me vejo ao espelho a dureza da boca e a dureza dos olhos me descontentam” (S. Bernardo – Graciliano Ramos).


Lutara muito para chegar lá. Noites mal dormidas, amizades perdidas e duas úlceras. Nada economizara para alcançar seu ideal.

Sempre repetia a si mesma que o homem somente encontra a sua razão de existir quando luta por seus sonhos. Isso a motivava e dava-lhe forças para seguir em frente. Ela tinha sonhos por demais, que a realidade passou a ter pouca importância.

Ninguém poupou nesses longos anos de batalhas; amizades antigas foram desfeitas, e as velhas companhias, aquelas das conversas bobas e das risadas sem razão, foram sumariamente abandonadas. Afinal, ela não poderia perder tempo. O alvo a esperava e a chamava todos os instantes. Ela precisava correr, não tinha tempo para distrações: estava, há muito tempo, atrasada.

Muitas vezes foi-lhe necessário cortar a própria carne e ela jamais hesitou em fazê-lo. A dor do sacrifício jamais a impediu de perseguir seu ideal. Mudou a forma de falar, de se vestir, os assuntos, os gestos, etc... Aqueles velhos hábitos, dos idos tempo da roça, os quais ela se esforçava diariamente em esquecer. Um novo passado precisava ser criado, outra pessoa precisava surgir.

Foram anos, sem tréguas, sem sequer um domingo ou dia de santo para descansar, mas, enfim, ela conseguiu. Conquistara seu lugar no podium - o alto da cobertura no bairro nobre da cidade. Era agora uma empresária bem sucedida, bem vestida e bem alimentada. Com uma taça champanhe nas mãos, olhava o mundo e as pessoas lá de cima. Era isso que, para ela, realmente, importava, era por isso que lutava por todos esses anos. Palmas à vencedora!

Mas, onde estavam os aplausos? Onde estavam as pessoas? Nem mesmo alguém com quem pudesse brindar a vitória ela encontrou naquele dia. Olhou ao seu redor e viu-se só, destituída dos outros e, principalmente, desprovida de si. Percebeu naquele momento que, na brutalidade da caminhada, havia se perdido.

Olhou para si e, de súbito, percebeu que não era mais aquela em frente ao espelho. Aliás, sequer sua imagem refletida na lâmina prateada ela conseguiu ver, apenas um borrão desfocado e sem contornos definidos projetou-se à sua frente. Achou-se ridícula, fútil e vazia de humanidade. Na boca, uma amargura a impediu de saborear a vitória, até mesmo o champanhe tinha um gosto de fel. As lágrimas, então, subitamente, saíram-lhe dos olhos.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Teleguiados



Eles nos contam o mundo, nos dizem o que existe lá fora. Nos falam de suas cores, sons e cheiros. Narram um mundo exótico habitado por animais e plantas que desconhecemos. Passamos a vida imaginando como seria esse mundo, viajamos nele em episódios diários de contentamentos.

Sentados em confortáveis poltronas e com o controle remoto nas mãos,  somos guiados por um universo incógnito. Vemos suas imagens, ouvimos seus sons, imaginamos seus cheiros e suas texturas. Quando nos vem a vontade de vê-lo com nossos próprios olhos e o ímpeto rompante de senti-lo, eles trancam a porta: “Cuidado! O mundo é perigoso e violento. Vemos todos riscos, em suas infinitas histórias de tragédias diárias: mortes, chacinas, tristezas e medo. Muito medo.

Eles nos dizem que aqui dentro tudo é mais seguro e confortável. E sempre nos perguntam qual seria a necessidade de investigar o mundo quando se tem alguém que faça isso sem riscos. Concordamos. Afinal, lá fora tudo é perigoso e podemos ser devorados pelas feras que lá existem.

Com o tempo, nos contentamos com os simulacros. Mesmo nossa curiosidade sendo grande, somos impedidos pelo medo. Queríamos tanto conhecer pelo menos as engrenagens daquele aparelho de onde saem as luzes. 

Sequer eles nós conhecemos. Mas, a final de contas, quem são eles, quem eles pensam que são?

Para nós, são apenas as imagens de seus sorrisos de dentes branquíssimos, reproduzidas em grandes telas de altíssima resolução. Que nos transmite, no riso fácil, a certeza de quem tem sempre a verdade.

Mesmo sem saber onde é esse mundo e se é que ele existe. Mesmo sem saber quem eles são, confiamos neles os nossos olhos e as nossas mãos. Acabamos por entregar a eles as nossas almas. 

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

  


 “Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples” (Manoel Bandeira)
Corpo curvado, cabeça baixa e livro aberto, tentava em vão compreender a extensa e enfadonha classificação dos atos administrativos. Eram apenas oito horas da manhã. Lutava contra o texto cansativo e o sono que me dominava.
Meu raciocínio capenga era interrompido pela voz de uma senhora, que chegava cumprimentando a bibliotecária. As duas amigas, na mesa ao lado, conversavam empolgadas entre um sussurro e outro. Falavam de uma tia distante que estava à beira da morte, trocavam receitas de um remédio caseiro, que uma delas dizia ser infalível para curar resfriado.
Relutava em desviar a atenção daquela conversa e resistir ao sono, restringindo meu pensamento ao direito administrativo. Até que, em voz alta, uma delas interrompeu a minha leitura. E antes mesmo de levantar a cabeça, pude ver um prato com meia dúzia de bolachas de nata e uma dose generosa de café amargo.
Entre um gole e outro, fui envolvido no papo. Comentavam elas admiradas acerca espessura do livro que estava lendo e da miudeza de suas letras. Aproveitaram para advertir dos riscos da leitura sem moderação. "Havia na cidade um homem, que de tanto estudar, acabou ficando doido". Fingia interesse e admiração pelo assunto.
De uma vez por todas resolvi fechar o livro. Minha mente estava longe daquele causo. Ao olhar a xícara de café e os restos das bolachas, pensava o quanto era privilegiado! Em silêncio, agradecia a Deus por estar na minha terra natal e por viver num lugar em que as relações humanas são tão intensas!