domingo, 17 de janeiro de 2010

Patrimonialismo e a cultura política brasileira

       
         A distinção entre a vida pública e a vida privada nasce com o advento da política, se tornando uma dicotomização já consolidada tanto pelo direito, quanto pela filosofia. Para se ter uma idéia, essa dicotomia nos remonta à Grécia antiga, onde Arstóteles, já a seu tempo, vislumbrava essa diferenciação entre as duas esferas da vida do sujeito, a esfera pública e a privada.
         Afirmava o filósofo que a vida do cidadão era dividida em duas esferas que coexistiam paralelamente, de um lado o cidadão grego possuía uma vida privada de outro, uma vida pública. A esfera privada era onde se inseria a vida familiar, lá era ele era senhor, impunha suas próprias leis, agia com autonomia, livre, atuando conforme seus costumes, suas idéias e tradições. Dessa maneira poderia livremente dispor de seus bens, cultuava seus próprios deuses. Era detentor do soberano direito à intimidade e privacidade., isto é, a inviolabilidade de sua vida familiar A idéia da vida familiar era representada por Aristóteles metaforicamente como o jardim.
          Paralela a esfera da família estava a esfera pública, nesse caso representada pela figura da praça. Aqui o sujeito estava inserido na vida política, no governo, na polis, na gerência daquilo que não era propriamente seu, enquanto indivíduo, mas sim de uma coletividade a qual pertencia. O indivíduo, que agora ganhava o aspecto de  parte de um todo, não era mais vista como o senhor, o pai de família, mas sim como cidadão (morador da cidade – polis). Donde podemos ver que desaparece a figura do indivíduo, ao ponto que emerge o cidadão.
Diferentemente que na família, na polis suas decisões eram públicas, não dispunha de autonomia para agir conforme seus interesses. Suas decisões deveriam ser de conhecimento de todos, e mais do que isso, deveriam passar pela análise e aprovação dos seus demais.
O homem grego vivia ao mesmo tempo situado tanto na vida pública, quanto na sua vida privada-familiar. E de modo algum uma dessas esferas, com princípios tão antagônicos , poderia interferir na outra, ou seja, ambas coexistiam pacificamente. Haveria lesão a ordem social, tanto se a vida pública tomasse por base os princípios da vida particular, quanto vice-versa.
Consoante a isso, o Direito, tido como regulador da vida em sociedade, e portanto , coerente com  essa sociedade que o cria, também passa a prever essa separação público/privado e o faz dividindo suas áreas de atuação em: Direito Privado e Direito Público. O primeiro, se preocupa dos interesses privados, e é portanto, regulado pelo princípio basilar da autonomia da vontade, o que significa uma liberdade de escolher entre as diversas formas de atuação possíveis. O agente, nesse caso, pode fazer tudo o que quiser, desde que não vedado pela ordem jurídica a qual está imerso.
Já no Direito Público, essa autonomia não existe, por se preocupar com os interesses públicos, de que cujo atendimento não é um problema pessoal, mas de uma coletividade de pessoas, a idéia de autonomia é substituída pela de função. O sujeito não é tido mais como um particular, detentor de autonomia para escolher a melhor forma de agir segundo seu alvedrio, mais é visto como pertencente a uma coletividade, sendo, portanto, apenas parte dela. Sua atuação jurídica deve limitar-se restritivamente ao permitido pela ordem legal. Aqui, de modo diverso do Direito Privado só se pode fazer aquilo que a lei determina, expressamente.
 Ou seja, de um lado o Direito regula o “jardim”, de outro a “praça”, conforme a divisão aristotélica da vida. Fazendo com que mesmos separados esses dois aspectos da vida humana possam coexistir e serem garantidos pela ordem legal.
Com o passar dos anos e a decadência da democracia grega, essa divisão entre público e privado passa a perder a relevância que outrora tinha.  Isso se dá com nascimentos dos governos monárquicos, e conseqüentemente dos Estados Absolutistas. Nesses Estados onde o poder político se encarna na figura de um representante divino, no caso o déspota, que passa a tomar todas as decisões políticas sozinho e soberanamente. Com isso, a dicotomização público privado vê-se por fim.
O monarca passa a ser o detentor da coisa pública. Os bens que antes pertenciam a uma coletividade de pessoas passam a pertencer individualmente ao rei, é portanto, o fim da vida pública. E por ser ele o detentor legitimado religiosa e politicamente da coisa pública, pode dispor dos bens do povo, conforme seus interesses.
 Com isso, aquilo que antes fora público passa a ser particular, ou seja, os bens da coletividade são apropriados por um determinado sujeito ou uma coletividade deles. O aparelho estatal passa a atender a interesses que não são os comuns a todos, mas próprios de determinadas pessoas. A essa tomada da coisa pública, pelo particular, dá-se o nome de patrimonialismo.
Dito isso, e feita essas breves considerações históricas e políticas, agora poderemos  fazer algumas reflexões acerca da nossa cultura política. Pois bem, no Brasil, assim como nos estados despóticos a coisa pública é destinada a fins que não são propriamente públicos, mas sim individuais. Isto é, temos uma certa dificuldade em separar esses dois aspectos da vida humana: a vida privada e a vida política, ou a coisa de todos da coisa privada. Os órgãos, empresas, e demais entidades estatais são estruturadas de modo a atender aos interesses do mercado, que são eminentemente particulares. O patrimônio público, conquistado da soma do dinheiro de todos é posto nas mãos de poucos, leia-se, de uma pequena elite que se apropria do poder político e consequentemente dos bens públicos.
Um dos exemplos desse aspecto da nossa cultura política patrimonialística é privatização, que aqui ganha alcunha de privadoação. As empresas públicas, isto é, aquelas compradas com o dinheiro de todos, é “vendida”, para não dizer doada, a particulares, por preços evidentemente abaixo do preço de mercado. Foi o que ocorreu, por exemplo, com a Vale do Rido Doce, mineradora antes estatal agora privada, e diga-se de passagem a 2° maior mineradora do mundo. Para enfatizar a idéia de apropriação, a Vale que segundo análises de economistas custaria 92 bilhões de dólares, pasmem, foi vendida no governo FHC pela bagatela de 3 bilhões. Dinheiro também emprestado pelo Estado para que a “compra” pudesse ser efetuada.
Desse modo, bens que antes eram públicos, passam a mão de particulares que deles dispõem como bem querem. Ocorre um encolhimento cada vez mais comum do Estado, de suas funções, seus poderes, bens etc. O Estado de garantidor de vida digna e responsável em atender aos interesses transindividuais passa a ficar cada vez mais enxuto, limitado, o que é denominado pela doutrina neoliberal como Estado mínimo. No Estado mínimo a idéia do Estado como garantidor de direitos é substituída pela idéia de mercado, que invade o cenário político.
 O cidadão, antes detentor de direitos como: saúde, educação, cultura, lazer etc., passa a ser tido como consumidor desses bens. Aquilo que antes fora obrigação do Estado e direito comum a todos, agora passa a ser um bem, que só é possível de ser auferido por uma minoria detentora de poder econômico para tanto.
 Ou seja, o que antes era um direito, agora passa a ser bem de consumo, colocado a venda no mercado. Passamos portanto, do fim da figura do cidadão enquanto detentor de direitos que lhes são próprios, à figura do consumidor. “Tudo vira um grande Big Mac, tudo é colocado na banca do mercado, saúde, cultura, órgãos, religião (...). O efeito mais desastroso dessa transformação consiste em reduzir o ser humano a um mero produtor e a um simples consumidor (...). Só o forte subsiste, o fraco não resiste, desiste, inexiste” (Leonardo Boff, in Agência Carta Maior, 6.1.2006)
         A distinção entre público e privado já consolidada e tão antiga, no Brasil parece ainda não ser conhecida. Conseqüência disso está no fato de termos um dos sistemas políticos mais corruptos do mundo. Vemos diuturnamente a corrupção se manifestar em todos os órgãos da Administração Pública, e nada fazemos ante disso. Ou seja, parece que não percebemos que aquilo que foi desviado era nosso, por direito.
         Paralelo a isso, nosso sistema de educação é um dos piores do mundo, a saúde dispensa comentários, é comum vemos pessoas: crianças, homens mulheres morrendo de fome, subjugados a uma vida sobrevida subumana. E não conseguimos estabelecer uma relação direta entre o patrimonialismo, leia-se, usurpação do espaço público pelo particular, e a potencialização dessas mazelas tão presentes na vida do brasileiro.
O antídoto contra esse mal seria a reestruturação do Estado paralela ao seu fortalecimento, e o combate eficaz a esse fenômeno patrimonialístico que tem tornado a máquina pública em privada. E o surgimento de um Estado que seja visto como detentor e defensor da coisa pública e garantidor de vida a todos, que esteja umbilicalmente ligado ao povo, que o compõe e governa. O que seria uma inversão, uma contracultura a essa cultura política posta.  

2 comentários:

Diogo Botelho disse...

Excelente artido minha liderança!

Presenciamos a tercerização do Estado, que diga-se de passagem, revela ser apenas um instrumento repressor e mantedor dessa super-estrutura que tanto contribui para a imensa desigualdade social em nosso país!1

Parabens e continue assim!!

Diogo Botelho disse...

Excelente artigo minha liderança!

Sem sombra de dúvidas que o aparelho estatal da forma como ele é estruturado, revestido apenas de uma "Falsa roupagem" democrática, certamente contribiu para o processo de aceleração das desigualdades sociais e privatiação dos bens inerentes ao exercicio da Dignidade da Pessoa Humana (acesso a Saúde, Escola e Educação).

Vamos combater o Bom combate!!

Parabens!!