LOUCURA

"O mundo está ao contrário e ninguém reparou." (Cássia Eller - Relicário)

Senhor Deus dos desgraçados

Dizei-me vós, Senhor Deus

Se é loucura... se é verdade

Tanto horror perante os céus?!"

(Castro Alves - O Navio Negreiro)

Ultimamente tenho andado meio desconfiado de tudo. Parece haver algo de estranho em todas as coisas que me cerca. O mundo na minha percepção, à cada dia perde um pouco da sua lógica reitora. As pessoas parecem não serem mais as mesmas e estão a cada dia mais estranhas. O sistema parece estar perdendo o resto de coerência que antes tinha. Os relacionamentos não são mais os mesmos. O tempo parece estar passando mais rápido que outrora. As coisas não apresentam serem mais as mesmas, o clima, a natureza, enfim, o mundo parece estar girando fora de seu eixo normal.

Tamanha tem sido a minha desconfiança, que passei a desconfiar da minha própria capacidade de desconfiar, ou seja, tenho questionado se o problema está em mim ou naquilo que vejo (no objeto ou no sujeito cognoscente). Será que não é a minha visão que está contaminada o que não me permite ver as coisas como elas são? Será mesmo que é o mundo que está diferente, ou sou eu quem estou diferente?

Como se vê, tenho tido sérias dúvidas acerca da minha sanidade mental. Motivos para isso não faltam, um deles, talvez o primordial, é o fato de que corriqueiramente tenho sido chamado de louco, de doido, de irracional, de exagerado. No início não me importava com essas acusações, pois não me restava dúvida acerca das minhas faculdades mentais. Mas por serem essas afirmações tão repetidas, me levaram a pensar seriamente sobre o assunto. Será mesmo que eu estou louco? Tenho me questionado.

As vezes penso que sim, pois muitas vezes o problema está nos olhos de quem vê a coisa, e não na coisa em si. Penso, de vez em quando, ser eu o “diferente”, pois não vejo as pessoas notando certas coisas que para mim parecem serem tão óbvias e claras. Não as vejo se indignarem com coisas, que para mim, são de tamanha injustiça e incoerência e portanto, inadmissíveis. As pessoas se comportam como se tudo isso fosse lógico e normal, o que não me entra na cabeça de forma alguma.

Outras vezes penso que não, e deixando a modéstia à parte, penso que sou eu um dos poucos que estão sãos, e na verdade é a grande maioria das pessoas andam contaminadas por uma certa “cegueira branca” que as tem impedido de ver as atrocidades e desumanidades que cometem diuturnamente. São elas as cegas e eu um dos poucos sujeitos que ainda possui certa capacidade de enxergar as coisas como elas são. De ver o rumo que o mundo tem ganhado nesses últimos tempos, principalmente no que diz respeito à perda dos valores humanos.

Vamos a alguns dos fatos que me levaram a pensar que são as pessoas que estão se comportando de maneira louca, e não eu. Isto é, tem sido a loucura a guia dos passos da humanidade.

Segundo dados da UNESCO: no mundo todo gastam-se 80 bilhões de dólares em armamentos, 40 bilhões em fumo, 25 bilhões em publicidade, 16 milhões em cerveja, 8 bilhões em vinhos e 4 bilhões em golfe. Sendo que o total de dinheiro necessário para satisfazer todas as necessidades elementares de saúde e educação de todas as crianças do mundo - também segundo a UNESCO - é de apenas 3,4 bilhões de dólares. São coisas como essas que me levam a afirmar que tem sido a loucura a condutora das ações da humanidade, e em especial do sistema posto.

Vamos a outros dados: resolver o problema da água para todas as pessoas no mundo, segundo a ONU custa 10 bilhões de dólares por ano, o mesmo custo dos gastos militares mundiais de cinco dias (segundo a Organização das Nações Unidas). Já segundo a UNICEF os cachorros e os gatos dos Estados Unidos, ingerem mais proteínas que todas as crianças africanas. Também, cada vaca européia recebe um subsídio de 3 dólares diários, mais do que a renda de 800 milhões de seres humanos. Será que as guerras, as vacas, os cachorros e gatos, têm mais valor que as pessoas? Na minha mente doida isso é inadmissível.

Outros fatos que me levam a pensar dessa maneira são: o aumento contínuo da violência no mundo, que na maioria das vezes possui motivos religiosos ou econômicos. Mata-se em nome de Deus, Alá, Jeová, etc,um ser sublime e soberano, que na imensa maioria das religiões mundiais assume a forma de amor. Também em nome do dinheiro, também as pessoas se destoem, matam, roubam, isto é, o dinheiro passa a ganhar mais valor do que a vida humana. É movido pela ganância que o homem desmata, polui, destrói o seu próprio habitat, e conseqüentemente destrói a si mesmo.

O Brasil não tem fugido a ilógica mundial, aqui a loucura ganha dimensões teatrais: Localizados em um espaço geográfico de abundantes riquezas naturais, vemos a fome imperar e matar todos os dias crianças, adultos e velhos, e não fazemos nada para contê-la. Com um país enorme de tamanho continental, vemos pessoas sem um lugar para se esconder da chuva e do sol, trabalhadores sem terra para viver e plantar, com o mínimo de dignidade. Donos de umas das maiores florestas do mundo a destruímos aos poucos e ininterruptivelmente. Legitimamos um sistema político podre e nos calamos diante da corrupção dos nossos representantes, pessoas que deveriam defender os nossos interesses e o que fazem é roubar aquilo que é nosso.

Esses são alguns poucos exemplos que me fazem pensar que o sistema capitalista está fundamentalmente ligado a loucura. A sua lógica de funcionamento (se é que ela existe) esta calcada em uma profunda incoerência. Por mais paradoxal que essa afirmação possa parecer, é a verdade: a lógica capitalista está calcada em uma ilógica. O poder econômico, social, religioso, etc, nas sociedades contemporâneas tem sido exercido de forma louca, inconseqüente e irracional.

Espanta-me também, muito mais do que essa ilógica destrutiva do capital é o fato das pessoas não perceberem o que está posto de modo claro e inequívoco, e ainda defenderem um sistema desses, que tanto oprime o próprio homem. Este é um dos fatos que me levam a pensar que que a imensa parcela da humanidade é portadora de uma cegueira que as impede ver a sua própria destruição e ao mesmo tempo faz com que apoiem a perpetuação dessa ordem.

Nesse sentido, se rebelar contra as amarras da nossa opressão, contra a perda da nossa dignidade, soa como incoerência, coisa de gente doida, algo inadmissível e impossível de ser feito. O sistema criado por nós, fruto da nossa invenção, com fim de facilitar a nossa vida, passa a nos oprimir e não fazemos nada ante isso. Nossa criatura ganha valor maior que seus criadores, e passa a controlar-nos (o que denomina-se fetichismo). Mudar esse sistema (mutável, pois é criação humana e não intrínseco a natureza), é tido como algo irrealizável.

Outra coisa que me leva à indignação (normalmente é coisa de doido) é ver as pessoas, em especial às detentoras do poder, tentando achar alguma forma de legitimar esse sistema que carece que qualquer legitimação e explicação baseada em um pensamento racional. A mídia e a ciência, cada uma com seu público-alvo, tem cumprido com esse papel, de fazer um trabalho hermenêutico forçoso de modo a dar uma lógica a um mundo que a nega constantemente. Fazendo com que toda essa loucura pareça como normalidade aos olhos da humanidade.

Escrevo esse texto e apresento esses argumentos na esperança que algum dos meus leitores perceba com isso a irracionalidade que impera no mundo atual. Também com fim de manter um pouco da minha vaidade, afinal: não faz bem ao meu ego ser chamado de louco.

Conversando alguns dos meus amigos - na verdade poucos deles sobre esse assunto, tenho visto que eles também pensam do mesmo jeito, que há algo de errado com tudo. Confesso isso tem me trazido certo conforto, ver que existem pessoas, mesmo sendo poucas, que pensam deste modo tem me feito sentir que não estou desamparado no mundo. Isso nos tem feito nos reunirmos de vez em quando a fim de dividirmos um pouco das nossas loucuras, e sermos compreendidos, afinal, apenas um louco entende o outro.